sexta-feira, 3 de abril de 2009

"Quintas", Dia de Ricardo Araújo Pereira

Vaia é para quem um jornalista quiser
A fazer fé nos jornais, Fernanda Câncio foi vaiada por afinidade


De todas as classes profissionais, nenhuma terá tanta razão de queixa dos jornalistas como os próprios jornalistas. Os jornalistas podem desconfiar dos políticos, desprezar os empresários, maldizer os artistas - mas quem eles detestam mesmo são os outros jornalistas. É uma atitude que, sendo em geral sensata e justificada (tenho vindo a abominar gradualmente o conceito de jornalista e o ser mais ou menos humano que, pontualmente, o corporiza), resvala com frequência para o traconismo (sim, sim: o traconismo). É uma espécie de corporativismo invertido.
Esta semana, Sócrates foi à ópera e o público vaiou-o. E o primeiro-ministro nem sequer cantou. Mas, como se apresentou com a namorada, os jornais optaram, quase todos, pelo título: "Sócrates e Fernanda Câncio vaiados no CCB". Só um observador particularmente subtil é capaz de compreender que, quando um grupo de cidadãos vaia o primeiro-ministro, está também a apupar quem o acompanha. Um jornalista menos hábil na hermenêutica das vaias não teria percebido que, naquele momento, os apupos se dirigiam, aparentemente em partes iguais, a José Sócrates e à namorada. No entanto, a fazer fé nos jornais, Fernanda Câncio foi vaiada por afinidade.
Eu estudei (o mais desinteressadamente possível, é certo) comunicação social. Mas, por falta de atenção ou talento, não saí da universidade preparado para interpretar uma vaia com este rigor. Duvido que, se Sócrates tivesse convidado o Dalai Lama para assistir à ópera, os jornais tivessem relatado que Sócrates e o Dalai Lama haviam sido vaiados no CCB. Se Manuela Ferreira Leite fosse primeira-ministra e o público a vaiasse numa cerimónia pública, não sei se a comunicação social diria que Ferreira Leite e o marido tinham sido vaiados. Uma hipótese provável - sobretudo para quem conhece Fernanda Câncio -, era que o público estivesse a vaiar o primeiro-ministro e a assobiar a Fernanda Câncio. Mas, neste caso, o ouvido dos jornalistas soube detectar que o que se ouvia eram apupos, e dirigiam-se tanto a Sócrates como à namorada.
Fernanda Câncio não está, evidentemente, isenta de culpas. Se, mal entrou no CCB, tivesse vaiado também o primeiro-ministro, os títulos poderiam ter sido diferentes. O casal seria vaiado na mesma, mas os jornais teriam sido forçados a registar que, apesar de tudo, Sócrates tinha sido mais vaiado do que Fernanda Câncio.
Por fim, o público presente na sala também não sai bem deste episódio. Sócrates chegou atrasado à ópera porque ficou à espera do primeiro-ministro de Cabo Verde. Com tantos e tão bons motivos para apupar o chefe do Governo, vaiar José Sócrates por ter aguardado pelo seu homólogo cabo-verdiano é como assobiar Carlos Queirós por não fazer a barba.

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