sexta-feira, 1 de maio de 2009

"Quintas", Dia de Ricardo Araújo Pereira

Uma córnea que prestigia
Deus não salva ninguém das grandes catástrofes naturais. E, no entanto, Nuno Álvares Pereira intercedeu em nome d'Ele para curar a córnea de Guilhermina de Jesus. Como entender, então, a façanha oftalmológica do novo santo?

A canonização de D. Nuno Álvares Pereira é, evidentemente, um motivo de orgulho para o País. O milagre que o novo santo operou em Guilhermina de Jesus, de 65 anos, natural de Vila Franca de Xira, pode não ser dos maiores - mas conta. A senhora estava em casa a fritar peixe quando um respingo de óleo a ferver lhe lesionou o olho esquerdo. Nuno Álvares viu a conjuntura propícia à santidade, e não falhou: curou-lhe a úlcera na córnea e prestigiou-se a si e a nós. Os portugueses sempre tiveram uma grande capacidade de se prestigiarem por interposto compatriota. Normalmente, o compatriota está vivo e pratica um desporto qualquer, mas um homem que está morto vai para 580 anos e cura úlceras na córnea a partir da eternidade também prestigia.

Contudo, receio bem que D. Nuno Álvares Pereira, que é santo há tão pouco tempo, já esteja a arranjar problemas com colegas que são santos há mais de 1500 anos. Refiro-me especificamente a Santo Agostinho, o santo que explicou a razão pela qual Deus, sendo embora omnipotente, omnisciente, omnipresente e infinitamente bom, permite que haja mal no mundo. A razão é o livre arbítrio: Deus concedeu a liberdade ao homem, que desfruta dela como entende, e é por isso que Ele não intervém quando os homens se matam uns aos outros. Ficou explicada a existência do mal moral. E o mal natural explica-se da mesma maneira: as catástrofes naturais são, também elas, causadas pela liberdade concedida por Deus, desta vez a Satanás e seus acólitos. É por isso, dizia Santo Agostinho, que Deus não salva ninguém das grandes catástrofes naturais, sejam elas um tsunami, um terramoto, ou um respingo de óleo a ferver para o olho. E, no entanto, Nuno Álvares Pereira intercedeu em nome d'Ele para curar a córnea de Guilhermina de Jesus. Como entender, então, a façanha oftalmológica do novo santo? Talvez Deus tenha interrompido por momentos o princípio do livre arbítrio para permitir a ocorrência de uma acção pedagógica. Pode ter sido um trabalho de equipa: Deus alerta Guilhermina de Jesus para os malefícios dos fritos respingando-lhe óleo a ferver para o olho, e Nuno Álvares, depois de aprendida a lição, intervém para lhe salvar a córnea. Os caminhos do Senhor são misteriosos e, como é cada vez mais evidente, até Santo Agostinho se perde neles.

O que interessa é que o milagre foi feito, registado, e levado em conta na beatificação de Nuno Álvares Pereira, para gáudio de Cavaco Silva. O Presidente da República suspendeu por instantes o preceito da separação entre Estado e Igreja e integrou a comissão de honra da canonização. Há quem diga que as congratulações do Presidente da República a propósito de um caso estritamente religioso violam o princípio da laicidade do Estado, mas se Deus interrompeu o livre arbítrio para prestigiar o nosso país, o mínimo que o Presidente pode fazer é mandar a laicidade às malvas para agradecer.

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